terça-feira, 12 de maio de 2015

Que importa saber quem sou?


                                                 
 
"Que importa saber quem sou? Afinal quem somos nós? Quem é cada um? Quem sou eu? ... Enformei-me ao longo dos anos no aturado e quantas vezes penoso convívio de todos os momentos comigo próprio. Moldaram-me os pensamentos e os sentimentos íntimos, que tinham por objecto o mundo interior e o mundo exterior. Este, por seu lado- as pessoas e as coisas-, também me trabalhou e modelou como o barro as mãos do artíficie. Um lavrar de artista, de que tanto pode sair um santo como um demónio! ... O que eu ando à procura não é, então, saber quem sou, mas donde venho. O sangue que corre nas veias, os humores que se herdam dos avós, o nome, o conhecimento de possível estirpe... Aquele que de mim quiseram fazer, manobrando na sombra, sem que por muito tempo eu o suspeitasse, não foi precisamente aquele que resultou. Não contaram comigo próprio. Sangue, cultura, meio, as coordenadas tópicas e crónicas- tudo isso faz o EU. Mas também o próprio indivíduo, no permanente colóquio, no contínuo debate e embate consigo próprio, é que sobretudo vai formando a sua personalidade. O EU vai gerando e elaborando e enriquecendo o EU... A orfandade, a solidão, o isolamento! Não contaram comigo: isso marcou o meu ser para toda a vida. E, se bem que com o dobrar dos anos, o corpo se vai modificando, enfraquecendo, e a nossa própria memória de nós mesmos se vá esfumando e apagando, a última coisa que de nós restará até ao fim é a consciência do EU. 
EU é das primeiras coisas que se tem consciência e a última coisa que se perde no limiar da morte...levantam-se-me no espírito sérias suspeitas de que, como queria o velho filósofo grego, tudo é número, e de que a personalidade, a individualidade humana não é mais do que uma feliz coincidência e
combinações quânticas, como num ábaco pitagórico. Se o ábaco é destruído, lá se vai a memória e com ela a inteligência e a experiência adquirida, o EU pensante e querente. (...) quando o ábaco se desfaz, o EU, poeira cósmica, retorna ao grande Todo."

 In "A casa do pó", Fernando Campos.











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