terça-feira, 26 de maio de 2015

Hospitais para pessoas, gatos e cães...



 "Aqui se cura todo todo o enfermo necessitado e, dos sobejos da muita renda de que o grão-turco dotou o hospital, se fazem gordas e grandes esmolas aos indigentes. Embora o maior de Damasco, não é no entanto este o único hospital ou hospício. Muitos outros há é um deles é para gatos. Fundamento atreito a obras pias, o grão-turco sustenta por todas as suas terras hospitais para homens e mulheres, mas também para gatos.A gente comum dos mouros, pela maior parte, vive pobre e miseravelmente e é de pouco comer e mal vestir, em especial onde moram turcos. Todavia, nenhum deles anda pelas portas pedindo, como na nossa Europa. Todos trabalham em qualquer serviço e os que de todo são impedidos por causa da çegueira ou outro aleijão, enfermidade, velhice ou fraqueza, os hospitais os sustentam. Para gatos, vi-os em Jerusalém e noutras cidades. Tem-nos a seu cuidado o gaiteiro, um mouro com seu prémio, que todas as manhãs se vai pôr à porta do açougue, com uma bacia na mão, a pedir esmola para os seus bichanos, pelo amor de Deus.
Meu companheiro, Frei Zedilho, muito se admirava e não podia compreender como tal pudesse acontecer: que houvesse hospitais para gatos e gateiros encarregados deles.
- Coisa mais inverosímil! - remordia ele. - Pôr-se o gateiro a pedir comida para gatos "por amor de Deus"!
- Se o grão-turco- atirou Isac Beiçudo- vivesse na vossa terra, irmão Zedilho, por certo seria franciscano. E se o vosso padre São Francisco fosse o grão-turco...
- Oh!...
- ... mandaria, sem dúvida, fazer hospitais para lobos!...
Todos nós rimos da saída do nosso judeu, até Frei Zedilho, que se calou, sem resposta. Aproveitei o silêncio para lembrar:
- Não há que admirar. Nas histórias escocesas lê-se que Dornadilha, rei da Escócia, promulgou uma lei em que se ordenava a todos os vassalos obrigassem cada vizinho de suas terras a ter três cães de caça, um galgo e dois ou três de gorda e pastores. Toda a cidade e vila teria um hospital em que, à custa do fisco real, sustentassem os cães velhos que haviam servido ou que tivessem mancado, cegado ou enfermado na caça...
- Não param as coisas de turcos e mouros nisto de gatos- acrescentou Isac. - Alguns deixam terras e campos, à hora da sua morte, ao erário comum, para que as suas bestas tenham ervagem de que se sustentem. E há aqueles que deixam em seus testamentos que, por suas almas, se dêem cada ano tantos cântaros de mel às moscas."
                                                                                                                          In "A casa do Pó" de Fernando Campos

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