Em muitas culturas existe o ritual iniciático ou de trânsito entre a infância e a idade adulta. A nossa cultura foi perdendo esse ritual de passagem tão necessário, embora restem elementos nas festas de apresentação à sociedade que continuam a praticar-se em alguns ambientes.
Durante muito tempo, a passagem à idade adulta era antecedida como uma prova, por uma demonstração da maturidade do indivíduo.
Nas tribos aborígenes, abandonar o rapaz numa floresta e obriga-lo a passar lá uns dias para ele se valer por si mesmo é coisa natural. Depois dessa prova, se o rapaz cumprir o desafio, ao sair da floresta pode demonstrar que enfrentou o medo, a solidão e a vida real sem necessidade dos outros. Converteu-se num adulto.
Em contrapartida, se o jovem regressa a correr, aterrorizado, significa que ainda não está preparado para entrar no círculo dos adultos. Sair a caçar pela primeira vez também é uma maneira de enfrentar a vida real.
O menino deve abandonar a sua infância, a sua inocência para assim se converter num adulto. Estes rituais implicam sempre desprender-se do eu anterior para deixar que o novo nasça.
Há uma cena em Siddartha que ilustra, de igual modo, o que é um ritual de passagem, uma maneira de abandonar a antiga existência para abraçar uma nova. Depois de conhecer os prazeres mundanos, desesperado por ter-se perdido a si mesmo, Siddartha pensa em matar-se. E é então que tem uma revelação. Sente-se novamente vivo. Descobre que devia morrer para voltar a nascer; matar o seu antigo eu, a sua antiga vida, para poder iniciar uma nova. Pois é quando deixamos morrer as nossas etapas anteriores que somos capazes de compreendê-las, de olhar para elas com outros olhos e obter um conhecimento, uma experiência delas.
Siddartha apercebe-se de que apesar de se ter perdido, de quase ter morrido, o seu pássaro cantor continua a cantar. Essa voz interior representada pela ave permite-lhe descobrir que conseguiu desprender-se da sua antiga vida.
Quando a nossa vida passada morre simbolicamente, deixamos para trás tudo o que éramos nessa altura, embora levemos connosco o que aprendemos. Renascemos num novo mundo que se abre diante de nós, com a sabedoria do vivido, mas também ignorância, com vazios que nos permitem descobrir o novo, conhecer e conhecermo-nos.
Nietzche disse que temos de morrer várias vezes numa vida. Ao longo da nossa experiência caminhamos, avançamos, escolhemos, e escolher é sempre deixar alguma coisa para trás, desprendermo-nos de uma parte de nós mesmos. Queimar etapas é uma forma de as matar, de morrer para renascer perante um novo desafio. Quebrar a casca do ovo é quebrar uma camada do mundo que nos rodeia. É desfazermo-nos da casca que nos serviu para chegar até aqui e ganhar um novo olhar.
Em suma, como a ave que quebra o ovo depois de ter crescido o suficiente, é transformarmo-nos de dentro para fora.
Para podermos nascer para o nosso próprio mundo, é preciso quebrarmos essa casca e aprendermos a olhar de novo.
Pensar é quebrar. Pensar por nós mesmos.
Por isso é que é necessário quebrar a casca do ovo, desfazermo-nos de toda a ideia pré-concebida para vivermos por nós mesmos, afirmando a nossa própria identidade.
E para acabar, uma frase posta na boca do mago lendário: «Olhar para um bolo é como ver o futuro: enquanto não o provarmos, o que sabemos dele verdadeiramente? Depois, já é demasiado tarde!», diz o mago Merlin no filme Excalibur.
Se não nos atrevermos a provar o bolo, como é que sabemos o que nos espera? Como é que saberemos se é isso que queremos?
In“A Cura Espiritual de Siddartha”, Allan Percy - capítulo 10
(Baseado no livro “Siddartha” de Hermann Hesse)
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